Do Tabuleiro para a História: A Jornada do Acarajé como Tesouro Cultural Baiano
Do Tabuleiro para a História: A Jornada do Acarajé como Tesouro Cultural Baiano .Uma verdadeira riqueza cultural!
Imagine-se caminhando pelas ruas de Salvador ao entardecer. O sol se põe sobre a Baía de Todos os Santos, pintando o céu com tons de laranja e vermelho que parecem refletir o fogo dos tabuleiros. De repente, seu olfato é invadido por um aroma inconfundível, intenso e convidativo: o azeite de dendê borbulhante. Seus olhos são atraídos para a figura majestosa de uma baiana, com sua saia rodada branca, turbante colorido e colares de contas, sorrindo enquanto serve o quitute dourado para uma fila de pessoas ansiosas. Esta não é apenas uma cena cotidiana; é um patrimônio vivo, um tesouro cultural que atravessou oceanos e séculos para se tornar um dos símbolos mais poderosos da identidade baiana.
O acarajé não é apenas comida; é um portal para a ancestralidade africana, um símbolo de sobrevivência e adaptação de um povo que, mesmo sob as condições mais adversas da escravidão, conseguiu manter vivas suas tradições culinárias e religiosas. Nas mãos das baianas, o acarajé transcendeu sua condição de alimento para se tornar um elo vivo entre passado e presente, entre África e Brasil, entre o sagrado e o cotidiano.
Neste artigo, convidamos você a uma jornada pelos segredos, histórias e significados do acarajé, revelando por que esse quitute dourado é muito mais que uma iguaria gastronômica – é um verdadeiro tesouro cultural baiano. Descobriremos como o ofício das baianas de acarajé se tornou patrimônio cultural, quais são os elementos sagrados e profanos que envolvem sua preparação, e por que sua preservação é fundamental para a identidade cultural brasileira. Ao final desta leitura, garantimos que você nunca mais verá o acarajé apenas como comida, mas como um símbolo vivo de resistência, tradição e sabedoria ancestral.
Das Savanas Africanas às Ruas de Salvador
A história do acarajé começa muito antes de sua chegada ao Brasil, nas terras da África Ocidental, especificamente na região habitada pelo povo iorubá, que hoje compreende países como Nigéria, Benin, Camarões e Togo. Lá, o bolinho já era preparado há séculos, possivelmente inspirado no falafel árabe, mas com características próprias que refletiam a cultura e os ingredientes locais. O próprio nome “acarajé” revela suas origens: deriva da junção de “akara” (bola de fogo em iorubá) e “je” (comer), significando literalmente “comer bola de fogo” – uma referência ao sabor picante e à cor dourada do bolinho.
Durante o período colonial, quando milhares de africanos foram trazidos à força para o Brasil como escravizados, trouxeram consigo não apenas sua força de trabalho, mas também sua cultura, religiosidade e conhecimentos culinários. O acarajé encontrou na Bahia, estado com a maior população negra do Brasil, um terreno fértil para se desenvolver e se adaptar. Os ingredientes originais foram mantidos ou substituídos por similares locais, mas a essência e o significado cultural permaneceram intactos.

O que começou como um alimento ritual, oferecido aos orixás nos terreiros de candomblé, gradualmente ganhou as ruas de Salvador. As mulheres negras, muitas ainda escravizadas, começaram a vender o quitute como forma de sustento, usando o dinheiro obtido para comprar sua alforria ou ajudar suas famílias. Assim, o acarajé se transformou em um símbolo de resistência e autonomia econômica, permitindo que muitas mulheres conquistassem sua liberdade através do domínio desse saber ancestral.
O Acarajé como Símbolo Sagrado
Para compreender plenamente a importância cultural do acarajé, é essencial reconhecer sua dimensão religiosa. Nas religiões de matriz africana, especialmente no candomblé, o acarajé não é apenas comida – é uma oferenda sagrada, principalmente associada aos orixás Xangô e Iansã. Cada elemento de sua preparação carrega simbolismos profundos: o azeite de dendê representa o fogo e a energia vital; o formato arredondado simboliza a perfeição e a totalidade; a cor dourada evoca prosperidade e poder.
O professor da Universidade Federal da Bahia e doutor em antropologia, Vilson Caetano, enfatiza que “o acarajé é símbolo de resistência e faz parte da história”. Quando as práticas religiosas africanas eram perseguidas e criminalizadas no Brasil, o acarajé serviu como uma forma de manter viva a conexão com a ancestralidade e a espiritualidade africana. Através da comida, elementos culturais e religiosos puderam ser preservados e transmitidos de geração em geração, mesmo em tempos de opressão.

Esta dimensão sagrada permanece viva até hoje. Muitas baianas de acarajé são também iniciadas no candomblé, e o preparo do bolinho segue rituais específicos quando destinado às oferendas religiosas. A preservação desses aspectos sagrados foi um dos argumentos centrais para o reconhecimento do ofício das baianas de acarajé como patrimônio cultural, destacando a importância de proteger não apenas o alimento em si, mas todo o universo simbólico e espiritual que o envolve.
As Guardiãs do Saber: O Ofício das Baianas de Acarajé
Quem são as baianas de acarajé? Muito mais que vendedoras de comida de rua, elas são guardiãs de um saber ancestral, transmitido oralmente de geração em geração, geralmente de mãe para filha. São mulheres que carregam em seus tabuleiros não apenas quitutes deliciosos, mas também a memória viva de suas antepassadas e a resistência cultural de um povo.
A indumentária tradicional da baiana de acarajé é tão significativa quanto o próprio alimento que vende. O vestido branco adornado com rendas, o pano da costa sobre os ombros, o torso (turbante) na cabeça, os colares de contas coloridas, as pulseiras e os brincos – cada elemento carrega simbologias específicas, muitas delas relacionadas às religiões de matriz africana. O branco representa a pureza; os colares de contas simbolizam proteção e conexão com os orixás; o turbante é sinal de respeito e sabedoria.
O reconhecimento da importância cultural desse ofício veio em etapas. Em 2002, uma lei municipal instituiu o acarajé como Patrimônio Cultural de Salvador. Posteriormente, após um processo iniciado pela Associação de Baianas de Acarajé e Mingau do Estado da Bahia, o Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA e o Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) reconheceu, em 2004, o “Ofício das Baianas de Acarajé” como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, inscrevendo-o no Livro dos Saberes em janeiro de 2005. Mais recentemente, em setembro de 2024, o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC) revalidou o registro como Patrimônio Imaterial da Bahia.
A Alquimia do Acarajé Autêntico
O que torna um acarajé autêntico? A resposta está não apenas nos ingredientes, mas no processo de preparo, nos saberes e técnicas transmitidos através de gerações. O acarajé tradicional é feito com feijão-fradinho descascado, cebola e sal. Antigamente, o feijão era moído em uma pedra específica (pedra de moer) ou pilão; hoje, muitas baianas utilizam liquidificadores, mas mantêm a técnica de bater a massa até ficar aerada.
Os bolinhos são moldados à mão e fritos em azeite de dendê quente, adquirindo sua característica cor dourada e aroma inconfundível. Depois de fritos, são abertos ao meio e recheados com camarão seco, vatapá (creme à base de camarões, condimentos e pão molhado ou farinha), caruru (cozido feito com quiabo) e salada. A pimenta é opcional, diferenciando o acarajé “quente” (com pimenta) do “frio” (sem pimenta).

Desafios Contemporâneos e Controvérsias
Apesar de seu reconhecimento como patrimônio cultural, o acarajé enfrenta desafios significativos no mundo contemporâneo. Um dos mais polêmicos é a tentativa de descaracterização do alimento, seja pela modificação de ingredientes tradicionais ou pela renomeação como “bolinho de Jesus” por alguns vendedores evangélicos, o que gerou intensos debates sobre apropriação cultural e respeito às tradições afro-brasileiras.
Outro debate recente surgiu quando o governo do Rio de Janeiro anunciou, em 2023, que o acarajé seria reconhecido como patrimônio histórico e cultural do estado. A notícia gerou reações diversas, com muitos baianos questionando como um alimento tão associado à Bahia poderia se tornar patrimônio carioca. O historiador Matheus Buente esclareceu que “quando algum lugar decreta algo como patrimônio histórico cultural, ele não está dizendo que aquele ‘bagulho’ é daquele lugar. Está dizendo apenas que é importante para a cultura”.
O professor Vilson Caetano oferece uma perspectiva mais ampla: “O acarajé não é da Bahia, é do mundo. Por onde o africano iorubá passou, ele fez bolinho de feijão”. Esta visão reconhece as origens africanas do acarajé e sua presença em diversos locais da diáspora africana, embora sua associação com a Bahia seja inegavelmente a mais forte e culturalmente significativa no Brasil.
Impacto Econômico e Social
Para além de seu valor cultural e religioso, o acarajé tem um impacto econômico e social significativo. Segundo dados da Associação Nacional das Baianas de Acarajé (ABAM), existem mais de 5.000 baianas em atividade na Bahia, sustentando milhares de famílias através desse ofício tradicional. O acarajé é também uma importante atração turística, movimentando a economia local e promovendo a cultura baiana internacionalmente.
Os pontos de venda de acarajé tornaram-se locais de sociabilidade e troca cultural, onde turistas e moradores locais se encontram, conversam e compartilham experiências. Muitas baianas de acarajé se tornaram figuras emblemáticas em suas comunidades, respeitadas por seu conhecimento e papel na preservação da cultura afro-brasileira.
O reconhecimento como patrimônio cultural trouxe maior visibilidade e valorização para o ofício das baianas, fortalecendo sua identidade cultural e proporcionando proteção legal contra descaracterizações. Também contribuiu para a promoção do turismo cultural na Bahia e para a preservação de saberes ancestrais que poderiam se perder com o tempo.
Mais que um Bolinho, uma Identidade
O acarajé transcende sua condição de alimento para se tornar um símbolo de identidade cultural, resistência e preservação da memória ancestral. Através dele, podemos compreender a rica contribuição africana para a cultura brasileira, a força das mulheres negras que mantiveram vivas suas tradições mesmo em condições adversas, e a importância da gastronomia como veículo de transmissão cultural.
Quando reconhecemos o acarajé como patrimônio cultural, estamos valorizando não apenas um bolinho de feijão delicioso, mas todo um universo de saberes, práticas, crenças e histórias que constituem parte fundamental da identidade baiana e brasileira. Estamos reconhecendo que a cultura se manifesta também através dos sabores, aromas e técnicas culinárias que passam de geração em geração.
Em um mundo cada vez mais globalizado e homogeneizado, a preservação de patrimônios culturais como o acarajé torna-se ainda mais importante. Eles nos lembram da riqueza da diversidade cultural, da importância de respeitar e valorizar diferentes tradições, e do poder da comida como elemento de conexão entre pessoas, tempos e lugares.
Referências
- Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). (2005). Dossiê IPHAN 6: Ofício das Baianas de Acarajé. Brasília: IPHAN.
- G1 Bahia. (2023). Historiador e antropólogo da BA explicam por que acarajé pode ser reconhecido como patrimônio histórico cultural de outro estado. Disponível em: https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2023/10/31/historiador-e-antropologo-da-ba-explicam-por-que-acaraje-pode-ser-reconhecido-como-patrimonio-historico-cultural-de-outro-estado.ghtml
- Costa do Sauípe. (2024 ). Baiana do Acarajé: Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. Disponível em: https://www.costadosauipe.com.br/blog/baiana-do-acaraje
- Conselho de Cultura da Bahia. (2024 ). Registro do ofício de baiana de acarajé como patrimônio Imaterial da Bahia é revalidado. Disponível em: http://www.conselhodecultura.ba.gov.br/2024/09/1101/Registro-do-oficio-de-baiana-de-acaraje-como-patrimonio-Imaterial-da-Bahia-e-revalidado.html
- Ciência Hoje. (2022 ). Patrimônio, comida e dádiva. Disponível em: https://cienciahoje.org.br/artigo/patrimonio-comida-e-dadiva/
- Associação Nacional das Baianas de Acarajé (ABAM ). (2024). História e Tradição do Acarajé. Salvador: ABAM.
- Lody, R. (2019). Tem Dendê, Tem Axé: Etnografia do Acarajé. São Paulo: Editora Senac.
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